PSICOPEDAGOGIA CLÍNICA COM CRIANÇAS CARENTES
Simone Cavallari
Pacientes da psicopedagogia são crianças e adolescentes que não conseguem aprender. Relato de Experiência
Partindo do pressuposto de que a psicopedagogia pode auxiliar as crianças de qualquer nível socio-cultural me propus a transportar a experiência clínica para um centro educacional de crianças carentes. As dificuldades e limitações se impuseram rapidamente e o desafio transformou-se em para mim em aprendizado enriquecedor como profissional e como pessoa.
Quando comecei a atender as crianças do Centro Educacional Colibri simplesmente pensei em transportar para cá minha experiência e meus conhecimentos adquiridos em muitos anos, em meu consultório no Itaim, tratando crianças provenientes das mais renomadas escolas paulistanas.
Minha idéia era ,como psicopedagoga clínica, ajudar as crianças carentes que não conseguiam sucesso na aprendizagem, e a maneira que julguei mais conveniente era aquela que já dominava: primeiro realizar um diagnóstico psicopedagógico individual com cada criança que me encaminhassem e depois juntá-las em duplas ou trios para realizar o tratamento.
Logo, porém , verifiquei que seria preciso uma reformulação de meus esquemas anteriores e que teria que assimilar a nova realidade e me acomodar a ela da maneira mais proveitosa possível. Hoje, ( já passados cerca de três anos ), fiquei com vontade de detalhar as características do processo de diagnóstico dentro desta instituição, as limitações que ocorrem e os questionamentos que se impõem.
O Centro Educacional Colibri
A primeira informação necessária é contar um pouco o que é o Centro Educacional Colibri, e quem são suas 300 crianças. O Centro fica no município de Embu, dentro da Grande São Paulo em uma área enorme com boas instalações de infra estrutura e muita área verde. Aqui o bairro é misto entre o rural e o urbano, e quando se fala em crianças que ficam na rua, isto significa (para a maioria delas ) que ficam no futebol do campinho, soltando pipa, jogando pião, subindo em árvores para catarem os frutos da estação... várias têm, inclusive, contato com cavalos e sabem montar a pelo ! Freqüentam duas escolas públicas ,aliás uma em Cotia e a outra em Embu. Todos permanecem no centro por cerca de 4 horas, almoçam e vão para a escola ou vice-versa. O transporte é feito por um ônibus próprio pois o local fica bem afastado (dentro de um condomínio rústico com ruas de terra e ainda resquícios de mata atlântica ) e só assim o comparecimento do pessoal ficagarantido.
As crianças e adolescentes ( de 4 a 17 anos ) são divididos em turmas de mais ou menos 25. Uma educadora fica responsável por cada turma e a acompanha durante as refeições, nas atividades dentro das salas, e nos muitos momentos de recreação no lindo espaço disponível. Além disso há a possibilidade de aulas de música, capoeira, educação física,artes e computação com outros especialistas.
Relação Colibri e Escolas
Não existe entrosamento entre os estabelecimentos de ensino e suas professoras e o Centro Colibri e suas educadoras sobre métodos ou parcerias, ou mesmo para se discutir casos de alunos problemas. O que existe, fica restrito à passagem de dados imprescindíveis como horários das aulas e listas dos matriculados por série.
Um dos compromissos do Centro Colibri com as famílias da região é que a lição de casa que os alunos trazem das escolas serão realizadas em um horário determinado e acompanhadas pelas educadoras. Na verdade é um compromisso muito conflitante para todos. Como as escolas são muito inadequadas, o conteúdo dessas lições choca-se com o que se entende por educação significativa, por conhecimento de faixa etária, ou por criatividade ou raciocínio. Enfim, são tarefas chatas, monótonas, repetitivas e sem sentido. Não se pode ignorar essas lições, mas também ninguém coloca muita energia nestes momentos em tese dedicados a elas. As educadoras por não concordarem por princípio e os alunos porque preferem realizar outras atividades mais prazerosas, assim esquecem cadernos, dizem que não tem lição e preferem atividades diferentes ( fichas pedagógicas, livros e jogos que as educadoras oferecem para quem não tem lição ter algo para se ocupar).
A Psicopedagogia
Desde a inauguração do Centro trabalho como Psicopedagogia voluntária, o que me entusiasma muito pois além de tudo moro no mesmo condomínio e conheço várias das famílias há pelo menos 15 anos.
O encaminhamento das crianças para a psicopedagogia é feito pelas educadoras.
No convívio com sua turma ela percebe aqueles que destoam. O que é destoar do grupo? O primeiro comportamento que chama a atenção é aquele que atrapalha: o menino que não fica na sala, não obedece as regras, que briga, que bate..., as crianças recém chegadas, oriundas de escolas de cidadezinhas do nordeste, ou que não freqüentavam nenhuma escola. A educadora mais preparada logo percebe quando o menino nunca escreve, outra de repente, em setembro pode descobrir que cinco da sua turma de quarta série não escrevem quase nada. "Copia tudo, mas não sabe o que copiou”, é uma constatação corriqueira.
A primeira entrevista é feita diretamente com a própria criança ou adolescente Os dados do histórico familiar e escolar disponíveis estão nas fichas individuais do Centro.
No arquivo também encontramos relatórios semestrais das educadoras sobre cada criança. São informações úteis que ajudam a entender como a família está constituída. Famílias pobres, desempregados, barracos... Famílias numerosas, muitos irmãos, criados por avós, tias. Famílias desestruturadas, mulheres sozinhas, maridos que sumiram, alcoolismo... Famílias mal assistidas, doenças estranhas, internações mal explicadas...
As tentativas de conversar com a família são sempre posteriores a várias sessões e teriam o objetivo de sensibilizar, colherem mais dados sobre o histórico e a saúde dos atendidos.
Marcar para conversar com a família é complicado: antes, no início minha expectativa era maior. Porém depois de várias tentativas, infelizmente, cheguei a conclusão que as entrevistas não são produtivas. A mãe quando se dispõe a vir (não esquecer de que o Centro é afastado ) ou quando consegue pedir para a patroa para vir , vem ressabiada já achando que o filho aprontou. Não vai contar nada para o marido, se não o garoto apanha. Não consegue explicar o nome da doença, não lembra o nome do remédio. Soma-se às dificuldades de locomoção, o mau atendimento dos hospitais e postos de saúde, a uma acomodação, uma certa aceitação resignada em relação ao problema do filho. Existem exceções, mas são muito raras.
O número de crianças que em tese se beneficiariam com atendimento é tão grande, e suas carências culturais e afetivas nos mobilizam de tal forma que a primeira coisa que em pensei ao iniciar o trabalho foi atender o maior número de crianças. A seqüência diagnóstica individualizada (hora do jogo, provas operatórias, provas de motricidade, desenhos projetivos,... ) a que estava acostumada no consultório se tornou longa, demoradíssima e rapidamente inviável. Hoje mantenho quase como ponto de honra o primeiro contato individualizado com cada um que me chega: uma conversa, a leitura da pasta individual junto à criança, esclareço dados, explico qual é meu papel, e peço um desenho livre.
As crianças e adolescentes me surpreendem ao contar com naturalidade que o pai não vive junto, que o irmão foi atropelado, que a mãe deu os irmãozinhos gêmeos para uma família cuidar, que só ele é filho do casal atual, ou que nem sabe dizer quem são os pais de seus vários irmãos. Às perguntas sobre as dificuldades na escola respondem com mais resistência, mas demonstram satisfação quando afirmo que vou ajudá-los. A maioria se entrega com facilidade, outros mais desconfiados vão se chegando aos poucos.
Após este contato inicial acomodo o novato em algum grupo. Em geral o atendimento em grupo funciona bem. As atividades de artes, os jogos, as brincadeiras com letras e palavras vão nos revelando as dificuldades específicas de cada um.
Este diagnóstico invariavelmente aponta para duas ações fundamentais para o psicopedagogo em relação aos pacientes: a primeira recuperar a auto estima, e a segunda alfabetizar (no sentido amplo do termo).
No decorrer das sessões, é comum recorrer a algumas das etapas que foram saltadas do diagnóstico tradicional, em relação à lateralidade, consciência fonológica, etc. Quando há suspeita neurológica , quando um trabalho fonoaudiológico seria ideal, quando tenho certeza de que uma terapia poderia reverter casos mais graves fico de mãos atadas: o encaminhamento para especialistas de outras área da rede pública é difícil de acontecer. Pelas próprias famílias, como já foi dito, mas principalmente pela morosidade dos órgãos competentes que desanimam qualquer um.
Apesar de todas essas dificuldades e limitações do trabalho no Centro Colibri grande parte das crianças e adolescentes que passaram por minhas mãos realizaram progressos significativos .Acredito que o fato de freqüentarem um local acolhedor e respeitador de cada um como indivíduo e cidadão tem importância básica. Mas o atendimento em pequenos grupos cria um vínculo centrado na aprendizagem que por sua vez permite dar voz à esperança de ser capaz de aprender, única maneira de progredir.
Ainda tenho muitos conflitos ( a vontade é de transformar essa escola de má qualidade a que são obrigados a freqüentar ) . Muitos questionamentos ( será que o caminho é este mesmo de um diagnóstico mais rápido, de sessões em grupo ? e os muitos que não são encaminhados pelas monitoras ? e os muitos que nem convivem em centro nenhum ?
Aquela história de trabalho de formiguinha, do pouquinho de cada um para realizar grandes mudanças é o que sustenta o trabalho e para ilustrar escolhi descrever um caso exemplar.
Vanessa
Em 1998 me encaminham Vanessa, que acabara de chegar ao Centro. Motivo : é uma das poucas crianças do Colibri que não está matriculada em nenhuma escola. Tem 12 anos, corpo de menina começando a se modificar, entra sem graça na salinha. Despenteada, mal cuidada.
Me conta que é filha de Zé do Rolo. ( Pessoa muito conhecida por todos desde quando o nosso bairro era denominado, pelos poucos moradores, de Matão. A família numerosa, dizem que teve mais de 20 filhos, mora em uma casa rústica, no meio do mato. Zé do Rolo, ou seu Zé, trabalha nas chácaras da região, em jardins e serviços gerais. Não tem condições de criar os filhos, que vão se espalhando pelo mundo. Uma das filhas, já adulta, perambula maltrapilha pelas ruas, pede água para encher seus baldes em várias casas, sempre acompanhada de meia dúzia de cachorros. As vezes um irmão ainda menino a acompanha. Ela tem problemas mentais e o garoto não se adaptou ao centro, parecia um bichinho, mal falava, não sabia nem o nome das cores. Tudo isso eu já sabia não foi a Vanessa quem contou ).
Pergunto porque não está na escola. Já fui na 1. e na 2. série e parei. As professoras eram muito ruins...E de repente, um pedido : queria aprender a ler e escrever.
Das atuais 7 pessoas que moram em casa atualmente, só um irmão o Ronaldo sabe ler um pouco. Em Cotia, e mostra orgulho, mora outro que sabe ler bem, trabalha e tem sua casa. Vai falando, agora mais à vontade. Tinha mais irmãos, mas os pais deram quando nasceram, um menino, e depois os gêmeos bebês. ( Esta história realmente correu o bairro na época). Conta que até sabe onde moram, mas não fala com eles: só vejo de longe.
Peço um desenho. Uma casa que ocupa quase o sulfite inteiro: duas portas, uma janela. Um telhado caprichado. Um vaso de flor não muito pequeno do lado de fora. Quem mora na casa?, pergunto. Resposta : ninguém.
Explico que quero que escreva algumas palavras do jeito que souber, para poder ajudá-la a partir do que sabe.
(menina - porta - escola - cadeira - pato )
Aplico também a prova de conservação de quantidade e o resultado demonstra que Vanessa possui pensamento operatório.
Já lhe dou a devolutiva no final desta primeira entrevista. "você tem todas as condições de aprender a ler e escrever. Você é inteligente e tem muita vontade. Você será como seu irmão que mora em Cotia, pode ter certeza. "
Isso foi em início de abril. Vanessa foi bem acolhida por sua educadora e pelo grupo das meninas adolescentes. O Centro foi atrás da sua documentação para que ela pudesse voltar à escola. Os documentos existiam, estavam com o pai. Mas, nesta época do ano não existiam mais vagas. Ela não ficou chateada, não queria entrar na escola, grande e sem saber ler. Trabalhamos juntas uma vez por semana naquele ano. Sempre interessada, me pedindo coisas a cada sessão : queria escrever meu nome inteiro ( sobrenome completo que ficou treinando, treinando e me mostrou satisfeita uma semana depois); me arruma uma cartilha, me empresta um livro, agora quero escrever na outra letra (cursiva).
Seu progresso acelerado na alfabetização refletia-se na alegria de recuperar a auto estima. Estava se cuidando mais, mais alegre, bonita, com postura mais decidida, com amigas (uma até levou para mim lá na salinha: ela também precisa...) No final da sessão sempre me agradecia e me dava um beijo.
Depois, sumiu ( como acontece muito com as crianças do Centro), não voltou no ano seguinte. Soubemos mais tarde que estava freqüentando a escola estadual em Cotia, morava com o irmão e estava bem.
Aquela flor tinha crescido e desabrochado no lado de fora da casa grande.
Pacientes da psicopedagogia são crianças e adolescentes que não conseguem aprender. Em geral, espertos durante as brincadeiras, se viram bem no dia a dia, mas não tem sucesso na escola. A queixa não difere muito entre as crianças da classe média/alta e as crianças pobres do Centro Educacional Colibri.
Assim como a criança ou adolescente que nos chega ao consultório, as daqui também chegam com a auto- estima baixa. As defesas, para não entrarem em contato com suas próprias dificuldades, com seu insucesso, também não diferem muito : agressividade exacerbada, desprezo pelo aprender, evitação de tarefas relacionadas à escola, passividade e abandono dos estudos.
Porém o tratamento psicopedagógico esbarra em problemas que vão além do fracasso escolar. As crianças e adolescentes carentes são heróis que precisam vencer obstáculos imensos dentro da família e fora dela.
Acredito que a possibilidade de reverter a quantidade de indivíduos da população carente que fracassam no aprender está na melhoria da escola, na conscientização de cidadania das famílias, e nas sementes esparsas de esperança que cada um de nós espalha para as futuras gerações.
Publicado em 01/01/2000
Fonte: http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=66